por Redação
Quatro anos
são insuficientes para agroecologizar o campo. Em vez de incentivos universais,
que promoveram “agronegocinhos”, será preciso programas integrados focados em
agricultores já envolvidos, a partir de fundos locais e autonomia
1) Balanço
das políticas em favor da agroecologia nos governos de Lula e de Dilma:
Participei
de todas as formulações e negociações de propostas de políticas públicas para a
agroecologia desde o final do governo FHC até o golpe de 2016. Apesar de
algumas tentativas de conseguir criar um programa governamental específico
dirigido para a promoção da agroecologia, o que prevaleceu neste longo período
foram as políticas ditas “universais”, isto é, políticas acessáveis por todos
os agricultores familiares. E nem todas as políticas pertinentes foram objeto
de avaliação, formulação e propostas pelo nosso campo de atividade.
As políticas
mais importantes para a promoção do desenvolvimento da agricultura familiar
foram as de Crédito (PRONAF), Assistência Técnica (PNATER) e Mercado (PAA e
PNAE). Outras políticas, nas áreas de ensino e de pesquisa, tiveram menos
relevância, mas também são, estrategicamente, da maior importância.
A ANA,
Articulação Nacional de Agroecologia, atuou em todas estas políticas com
resultados variados que passamos a avaliar.
As
negociações sobre a incorporação do tema da agroecologia no PRONAF resultaram
na inclusão de três modalidades de crédito na agenda deste programa: o PRONAF
agroecologia, o PRONAF semiárido e o PRONAF florestas. Apesar de todos os
nossos esforços, o formato destas propostas de crédito ficou muito distante do
que queríamos. O resultado foi que todos foram muito pouco acessados pelos
agricultores e até, no caso do PRONAF florestas, totalmente desviado de seus
objetivos iniciais, ao ponto de ser conhecido como PRONAF pinus ou PRONAF
eucalipto.
O PAA e o
PNAE incluíram cláusulas dirigidas à compra de produtos orgânicos ou
agroecológicos, pagando um diferencial de 30% (se não me engano) a mais no
preço das compras governamentais. Houve um maior acesso de agricultores
familiares agroecológicos a estes programas quando comparamos com os acessos às
modalidades agroecológicas do PRONAF, mas nada que fosse muito significativo.
Mesmo as compras de alimentos produzidos de forma convencional, largamente
predominantes nos dois programas, nunca tiveram um impacto maciço entre os
produtores.
A política
de ATER (Assistência Técnica e Extensão Rural) foi, de longe, a que maior
impacto teve na promoção do desenvolvimento agroecológico. Creio que todas as
organizações da sociedade civil que promoviam a agroecologia tiveram amplo
acesso a esta política, mas os problemas de concepção e de operacionalização
levaram a impactos negativos consideráveis para estas entidades. Acredito que os
projetos financiados através de contratos com o governo a partir da lei de ATER
inibiram consideravelmente todas as metodologias participativas que as
entidades tinham aplicado até então. Inexoravelmente, estes projetos levaram a
um formato bastante convencional de ATER, com ênfase no difusionismo. Isto sem
falar nas crises permanentes geradas pela burocracia para receber os recursos e
para utilizá-los.
O formato
dos projetos é, a meu ver, algo que tem que ser totalmente reformulado no
futuro.
Na área de
educação e de forma mais genérica, de formação de agentes de ATER, o impacto
foi muito limitado. Nas universidades criaram-se cursos de agroecologia, sendo
que na formação básica não passaram de cadeiras isoladas em um universo
conceitual convencional. Alguns cursos de pós-graduação foram mais eficientes,
mas tiveram que lidar com o problema de trabalhar com profissionais, cuja
bagagem acadêmica era convencional. Finalmente, o esforço de reciclar a
formação dos profissionais de ciências agrárias, com cursos de agroecologia de
40 horas, foram um enorme esforço (mais de 8 mil formados) sem resultados
palpáveis. Ninguém se torna um agente de ATER agroecológica com estes cursinhos
intensivos que, aliás, privilegiavam a introdução de conceitos gerais ou a
apresentação de um cardápio restrito de técnicas.
2) Impacto
das políticas para a agricultura familiar dos governos populares:
O balanço de
todas estas limitações indica que pouco se avançou na promoção da agroecologia.
Temos que refletir e avaliar o quanto existiu, de fato, como avanço. Não temos
ideia de quantos agricultores adotavam a agroecologia em suas diferentes
modalidades (orgânicos, agroflorestais, agroecológicos propriamente ditos) e
quantos se encontravam em diferentes níveis de transição, em 2003. Também não
se tem ideia de quantos passaram a incorporar a agroecologia e, quantos
avançaram na transição agroecológica, desde então. Navegamos no achismo e na
autoglorificação dos nossos esforços, mas nos falta uma avaliação mais
aprofundada dos resultados e dos processos para obtê-los.
Sabemos que
neste período, o que prevaleceu não foi a promoção da agroecologia e sim a
promoção do agronegocinho, sobretudo nas regiões Sul e Sudeste, e que o impacto
deste processo foi a criação de uma forte diferenciação entre os agricultores
que aderiram a este modelo. Uma minoria significativa “enricou”, pelo menos no
curto prazo. Estes agricultores abandonaram seus sistemas tradicionais de policultivos
diversificados para se transformarem em monocultores de soja e de milho
(transgênicos!), embarcando na corrente atrelada nas commodities de exportação
e incorporando o pacote tecnológico do agronegócio. A maioria saiu perdendo e
muitos quebraram, vendendo suas terras ou arrendando-as para produtores maiores
e passando a viver de renda e aposentadoria.
A
agricultura familiar vem diminuindo no Brasil, desde 1996, quando começaram as
políticas de apoio governamental para esta categoria. Hoje existem menos 400
mil agricultores familiares do que no censo de 2006. Isto ocorreu apesar de, no
mesmo período, terem sido assentadas 400 mil famílias. Isto indica que, nada
menos de 800 mil famílias terem deixado as suas terras. Nem todas saíram por
causa das políticas que promoveram o agronegocinho. Muitas abandonaram seu modo
de vida por falta de outras políticas adequadas, sobretudo nas regiões Norte e
Nordeste. Entre outras políticas que fizeram falta está a que devia apoiar a
permanência dos jovens no campo. Os jovens estão saindo em massa e a idade
média dos agricultores vai levando a categoria dos agricultores familiares para
o envelhecimento.
É
preocupante o fato de que, com tanto tempo de ação de governos pretendendo
apoiar a agricultura familiar (22 anos) muitos dos produtores do Nordeste e do
Norte estarem classificados como parte da população em insegurança alimentar
grave, ou seja, faminta. O fato de existirem tantas famílias passando fome no
campo mesmo com acesso à terra indica que não existem políticas que se adequem
às suas condições ou que cheguem aos destinatários.
Há uma
recusa dos técnicos e políticos de esquerda que atuaram na busca sincera de
soluções para a realidade do campo brasileiro em admitir que erraram no
diagnóstico e nas soluções que apresentaram. Isto nos leva a uma preocupação
com o que vai se passar quando nos livrarmos do energúmeno. O governo Lula vai
repetir o que se fez no período 2003/2016?
3) O
agronegócio como prioridade de governo:
Os erros
destas políticas para a agricultura familiar somam-se com o erro de apostar no
agronegócio para garantir a segurança e a soberania alimentar de todos os
brasileiros. O agronegócio está voltado para seus lucros e a globalização
conduziu-o a dirigir seus investimentos para um número restrito de produtos que
possam ser exportados (soja, milho, carnes, café, suco de laranja, madeira e
celulose e outros de menor importância) e para aqueles demandados pela classe
A. Os produtos da dieta básica dos brasileiros, sobretudo o arroz, feijão e
mandioca, tem oferta per capita em queda há duas décadas e isto se reflete nos
preços dos alimentos, na penúria e na fome que vemos crescer no campo e nas
cidades grandes e pequenas.
O
agronegócio não pode resolver o problema da fome e da insegurança alimentar que
afeta, em números atualizados hoje, 125 milhões de pessoas, sendo que 33
milhões em estado de insegurança alimentar grave, ou seja, fome. Não vai
fazê-lo porque lucra mais exportando, e porque seus custos de produção estão
atrelados nos preços internacionais do petróleo e do gás, do potássio e do
fósforo que usam em seus fertilizantes. Não pode fazê-lo porque destroem os
recursos naturais renováveis, como o solo e a biodiversidade. Não podem fazê-lo
porque a instabilidade climática, para a qual as suas práticas muito
contribuem, provoca secas, geadas e temporais que afetam as lavouras.
O movimento
agroecológico já demonstrou, no Brasil e no mundo, que tem o potencial de
enfrentar o problema da insegurança alimentar, mas não vai ser o agronegócio
que vai adotar esta opção técnica. Isto se explica pelo fato de o agronegócio
operar em larguíssima escala, que só pode existir com imensas monoculturas,
antítese do modelo agroecológico. Só a agricultura familiar em pequena escala
pode adotar modelos produtivos, utilizando ampla diversidade de plantas e
animais de forma integrada entre si e com a vegetação nativa. Para isso, serão
necessários muito mais agricultores familiares do que hoje existem. Vai ser
preciso “recampesinizar” o Brasil. Isto não se faz do dia para a noite e,
sobretudo, não com o formato utilizado na reforma agrária até hoje.
4) Propostas
para o novo governo Lula:
A proposta
para o governo Lula seria, então, agroecologizar o campo brasileiro nos
próximos quatro anos? Não é viável. A introdução da agroecologia em massa
depende de muitos fatores, que não estão ainda presentes. Em primeiro lugar, o
efeito demonstração das vantagens da agroecologia vai ter que operar para que o
conjunto dos agricultores familiares possa ver esta alternativa como algo
vantajoso e ao seu alcance. A grande maioria dos agricultores não sabe o que é
a agroecologia e os que já a conhecem não percebem como podem adotá-la. É neste
ponto que entra a proposta para o próximo governo.
A meu ver,
devemos abandonar as tentativas de formular e implementar políticas públicas de
crédito, ATER, mercado, educação e pesquisa de forma generalizada (universal,
dirigidas para todos os agricultores), para centrarmos em propostas que
permitam acelerar a transição agroecológica dos agricultores já envolvidos
neste processo, além de atrair produtores próximos para se incorporarem a ele.
Na Política
Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO), elaborada pela sociedade
civil e pelos movimentos sociais do campo em 2011/2014 e adotada pelo governo
Dilma, o projeto não governamental era extremamente ambicioso e buscava
integrar um conjunto coerente de políticas universais. Enquanto isso, a parte
governamental concebia um programa muito mais modesto (embora ainda irreal),
visando ampliar o número de agricultores agroecológicos/orgânicos de 50 para
200 mil (números chutados pelo governo) em três anos. O governo, no entanto,
não fez mais do que reunir elementos dispersos de políticas que tinham alguma
relação com o tema sob um grande guarda-chuva, onde não havia recurso novo ou
ampliação do existente. O grosso dos recursos destinados para a disseminação da
agroecologia distribuídos pelo governo estava no programa de ATER e algo mais
no PAA, no programa de integração entre universidades e organizações da
sociedade civil e no programa do BNDES/FBB chamado de ECOFORTE. Era muito pouco
mesmo para as metas modestas propostas pelo governo, talvez uns 50 milhões de
reais por ano.
Para
conseguirmos o efeito demonstração que necessitamos, devemos buscar criar um
programa integrado de desenvolvimento agroecológico com uma dotação financeira
que permita cobrir as necessidades de até 500 projetos de apoio à produção
agroecológica, assessorando, em média, 400 famílias cada um. Estes recursos
deverão financiar o crédito e o fomento, infraestruturas produtivas (como as
hídricas, por exemplo), a ATER, e o processamento, acondicionamento e comercialização.
Estes recursos deverão estar disponíveis em um fundo de apoio ao
desenvolvimento agroecológico, gerido pelo Estado com a participação de
organizações de apoio e organizações de produtores.
Os projetos
deverão ser apresentados por entidades de produtores em cooperação com
entidades de apoio, públicas ou privadas sem fins lucrativos. Ao contrário do
modelo atual de projetos onde o governo define quase tudo que deve ser feito,
nesta modalidade os proponentes definem seus objetivos e métodos e ajustam os
termos de avaliação com os financiadores. O valor a ser designado para este
fundo deverá ser objeto de avaliação por uma comissão conjunta do governo com
as entidades da sociedade civil envolvidas na promoção da agroecologia. Os
recursos de crédito não devem passar por um sistema bancário, mas deverão ser
pagos pelos beneficiários para um fundo local estabelecido por cada projeto
para ser reinvestido para o conjunto dos participantes. Ou seja, para o Estado
estes recursos são uma doação para os projetos e não serão ressarcidos.
Esta
proposta não tem a pretensão de enfrentar o grave problema da produção de
alimentos no país no curto e médio prazo. Ele visa preparar a alternativa para
o futuro de forma consistente.
(Outras Palavras)
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